«...uma vez Neófito, cabe-lhe escolher o caminho místico, o mágico ou o
gnóstico».
Havia
três razões pelas quais nas religiões pagãs certas verdades, ou coisas supostas
serem verdades, eram transmitidas só em segredo e reclusão, por iniciação. A
primeira era uma razão social: pensava-se que essas tais verdades eram
impróprias para transmissão a qualquer homem, a nau ser que ele estivesse em
certa medida preparado para as receber, e que elas teriam resultados sociais
desastrosos se fossem tornadas públicas, pois isso significaria que seriam mal
compreendidas. «Etiamsi revelare destruere est...» A segunda era uma razão
filosófica: supunha-se que, em si próprias, essas verdades não eram de um
género que o homem comum pudesse compreender e que lhe poderia advir confusão
mental e desequilíbrio na conduta se lhe fossem inutilmente comunicadas. A
terceira era, por assim dizer, uma razão espiritual: pensava-se que, por serem
verdades da vida interior, essas verdades não deviam ser comunicadas, mas
sugeridas, e que a sugestão devia ser impressiva, rodeada de secretismo, para
que pudesse ser sentida como de valor; de ritual, para que pudesse impressionar
e surpreender; de símbolos, para que o candidato fosse forçado a abrir o seu
próprio caminho, lutando por interpretar os símbolos, em vez de se julgar cheio
de conhecimento se a comunicação tivesse sido feita por ensinamento dogmático
ou filosófico.
Não digo
que estas três razões se apresentassem claras ou em separado ou em conjunto,
embora assim divididas, nos espíritos dos antigos, sacerdotes ou leigos das
suas religiões. Mas digo que, quando não por inteligência directa, ao menos por
intuição, eles basearam as suas religiões neste esquema divisional.
As
religiões dos Antigos, e sobretudo as religiões pagãs da Grécia e Roma, que são
as que mais nos interessam, uma vez que os nossos espíritos são seus filhos,
estavam divididas em três formas. Havia uma forma social, o culto, que era o do
homem como cidadão. Havia uma forma individual, a poesia, que era do homem como
não-cidadão; cumprido o culto devidamente, ele podia interpretar para si os
deuses como entendesse e elaborar as suas lendas como lhe parecesse mais
adequado. E havia uma forma secreta, a iniciação, que participava em segredo
das características de ambas: era individual porque, mesmo quando a iniciação
era colectiva como nos grandes Mistérios pagãos, era sempre o indivíduo o
iniciado e não o grupo; era social, porque a iniciação era comunicada em ritual
e o ritual é social.
O que com
os Cristãos raramente está associado ou fundido com a poesia como acontecia com
os pagãos. (Não compreenderemos a Idade Média até que compreendamos que a
teologia era a sua poesia, que a ausência de poesia então mais não era que a
presença da poesia sob outra forma).
Todas as
religiões, porém, estão no mesmo estado que as grandes religiões pagãs. As três
formas de religião serão encontradas de uma forma ou de outra em todas. Nas
religiões cristas, por exemplo, temos o culto público, quer seja altamente
cerimonial como na Igreja Romana, quer pobre até à nudez como nas seitas
protestantes extremistas; temos a religião individual significando a reflexão
pessoal sobre os dogmas e fórmulas de fé, e isto é teologia onde (com os
pagãos), era antes poesia; e temos a vida interior do cristão, que é a sua
iniciação, porque nas religiões cristãs a iniciação é considerada como dada por
Cristo, só, misticamente, e não por qualquer sacerdote ou hierofante
ritualmente ou ceremonialmente. Por outras palavras — cujo sentido mais exacto
será compreendido mais tarde — a iniciação pagã encaminhou-se para a Magia,
como fazem todas as iniciações rituais, e a iniciação cristã encaminhou-se para
o Misticismo, como fazem todas as iniciações meditativas.
Qualquer
que seja o número de graus, exteriores ou interiores, na escala de ascensão
para a verdade, eles podem ser considerados como três — Neófito, Adepto e Mestre.
Na realidade, os graus são dez — quatro para o Neófito, três para o Adepto e
três, por assim dizer, para o Mestre. Há realmente também dois intergraus que
ficam entre o primeiro e o segundo, e entre o segundo e o terceiro há ordens,
estas também não numeradas. Os graus não numerados são graus de noviciado,
enquanto os outros são, cada um na sua medida, graus de realização.
O
Neófito, ao longo dos graus que esta expressão descreve, é essencialmente um
aprendiz; o seu caminho é em direcção à realização do conhecimento na esfera
exterior. No Adepto, ao longo dos seus três passos, há um progresso na
unificação do conhecimento com a vida. No Mestre há, ou diz-se que há, uma
distribuição da unidade assim atingida em virtude de uma unidade mais elevada.
Uma comparação
com coisas mais simples tornará isto mais claro, creio. Suponhamos que o
escrever grande poesia é o fim da iniciação. O grau de Neófito será a aquisição
dos elementos culturais com que o poeta terá de tratar ao escrever poesia e que
são, grau a grau e no que se afigura ser uma analogia exacta: 0) gramática, 1)
cultura geral, 2) cultura literária particular, 3) [incompleto no original, e a
numeração salta] O grau de Adepto será, extraindo a analogia da mesma maneira
5) o escrever poesia lírica simples como num poema lírico comum, 6) o escrever
poesia lírica complexa como em, 7) o escrever poesia lírica ordenada ou
filosófica como na ode.
O grau de
Mestre será, da mesma maneira: 8) o escrever poesia épica, 9) o escrever poesia
dramática, 10) a fusão de toda a poesia, lírica, épica e dramática em algo para
lá de todas elas.
Ao leitor
desta analogia literária ocorrerão três observações. A primeira é que se pode
ser poeta sem os graus de Neófito, Adepto do primeiro grau de Adepto sem sequer
se «tomar» o primeiro grau de neófito. A segunda é que a progressão descrita
não corresponde à que habitualmente acontece na vida, seja ela a de um poeta ou
a de qualquer outro homem. A terceira é que a função de toda a poesia, lírica,
épica e dramática, em algo que fica para além das três, é uma realização que
excede a compreensão.
Levei o
leitor a fazer estas observações para que eu pudesse, replicando-lhes,
completar a analogia com uma explicação.
Quanto à primeira observação: O primeiro grau de
Adepto é, na verdade, o primeiro grau real da iniciação real. Um místico
simples, que funde a sua fé e a sua vida, atingiu o começo da iniciação real,
enquanto o neófito aperfeiçoado, no qual a fé (ou conhecimento) e a vida ainda
estão separados, não a atingiu. Mas se o Adepto espontâneo tiver atingido o
Quinto Grau sem ter passado pelos cinco primeiros (que incluem o grau Zero),
terá de permanecer largo tempo à entrada da Câmara do Meio, onde se pode adequadamente
dizer estar «colocado» o primeiro grau de Adepto. Para passar ao Sexto Grau ele
terá, em certo sentido, de voltar ao princípio.
s.d.
Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética -
Fragmentos do espólio. Fernando Pessoa. (Introdução e organização de Yvette K.
Centeno.) Lisboa: Presença, 1985.
“Ensaio sobre a Iniciação.” Trad.: Maria Helena Rodrigues
de Carvalho